Casos de agressão contra a população LGBTQIA+ triplicaram em Mato Grosso do Sul neste ano. A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) divulgou para reportagem que em apenas três meses o Estado já registrou o mesmo número de agressões ocorridas nos 12 meses do ano passado.
De acordo com a Sejusp, o número de registros de lesão corporal dolosa contra vítimas LGBTQIA+ em todo o ano de 2022 foi de 28 casos, mesma quantidade de ocorrências entre janeiro e abril de 2023.
Se for levada em consideração a quantidade total de casos divididos pelos meses referentes, este ano foram cerca de sete casos por mês. Em contrapartida, 2022 contou com, aproximadamente, 2,3 casos mensais, o que representa um aumento de mais de 200%.
Theo Toledo, de 27 anos, relata que, desde quando se reconheceu como um homem transsexual, se sente acuado ao frequentar lugares comuns, como escola e trabalho, ou mesmo ao andar na rua.
“É como se as pessoas sempre ficassem olhando para cada indivíduo tentando adivinhar o que é aquela pessoa, qual a sua identidade, qual o seu gênero. Chega a ser frustrante às vezes você estar em um lugar público e não poder ser você mesmo porque não sabe qual é a reação do ser humano e nunca sabe o que vai acontecer”, relata.
Theo passou pelo processo de transição há seis anos e conta que vivenciou diversas situações desconfortáveis na Capital, com pessoas que não o respeitaram por ser um homem transsexual.
“Aqui em Campo Grande é bem difícil, as pessoas ficam reparando. Você vai em restaurantes e se sente acuado. Algumas pessoas são mais intrusivas, porque elas se sentem bem mais seguras estando em certos tipos de locais, e essas pessoas não sabem respeitar o seu gênero. Então, é bem complicado”, afirma Toledo.
Ele ainda explica que, como não é possível saber a reação de outras pessoas quanto ao seu gênero ou se vai ser desrespeitado, vive em um meio termo entre a sensação de acolhimento e o desamparo social.
De acordo com Toledo, ao longo de sua transição, se tornou uma pessoa introvertida por conta das diversas inseguranças que modificaram sua personalidade e pelo desconforto em não se sentir pertencente à sociedade.
“Às vezes você se sente acolhido, às vezes não. Eu não me sinto totalmente confortável em público, ou mesmo perto de família ou amigos, porque tem gente que ainda não nos aceita, apenas respeita. Então, não me sinto seguro, assim como tem outras pessoas que deixam de frequentar lugares para evitar certos tipos de constrangimento”, detalha.
Além dos casos de agressões contra a população LGBTQIA+, o número de registros de homicídio doloso está apenas dois casos abaixo do total de 2022. Segundo a Sejusp, no ano passado foram cinco homicídios contra os três deste ano. A secretaria também registrou nove casos de racismo por homofobia ou transfobia durante o ano passado e quatro nos primeiros meses deste ano.
O antropólogo João Victor Rossi argumenta que a violência contra a população LGBTQIA+ é um reflexo das ações de representantes governamentais, que por muito tempo permitiram que a violência se tornasse um ato frequente no País e no Estado.
“A LGBTQIAfobia é um dos grandes sustentos da nossa sociedade, que higieniza, exclui e mata para livrar a população do que pode alterar um ciclo ideário criado e alimentado a partir da normatividade pretendida e sonhada”, explica.
Para Rossi, o que reflete no aumento dos números de violência atuais é a conscientização da população LGBTQIA+, que busca por direitos e promove registros de agressões, além de buscar e cobrar representações políticas que tenham pautas voltadas à sensibilidade e aos interesses relacionados à questão.
“Tudo isso gera mais registros e, consequentemente, a ideia de que há aumento nos dados, quando na realidade a existência das violências se faz, e muito, há tempos”, frisa.
O psicólogo e diretor-presidente da Casa Satine, local de acolhimento e atendimento psicológico e jurídico para vítimas LGBTQIA+, Leonardo Bastos, afirma que a LGBTfobia vai além das vidas tiradas por crimes de ódio neste ano, pois se trata de um problema estrutural e cotidiano no Estado.
“Essa violência sempre existiu, ela também vai impondo um ciclo de violência cotidiano para as pessoas LGBTQIA+. Ela sempre esteve aí, e os dados internacionais sobre o Brasil e o Estado nos entristecem muito”, relata Bastos.
De acordo com o diretor, os tipos de violência mais comuns contra a comunidade no Estado são os que envolvem a violência psicológica intrafamiliar em espaços como a própria casa ou em escolas, ambientes de trabalho e ambientes de comum convivência.
O psicólogo diz que a agressão física também está entre os casos mais comuns de violência contra LGBTQIA+, principalmente causados por desconhecidos sem motivo além da LGBTfobia, dificultando o processo de denúncia.
“Em grande parte desses casos, a violência é gratuita. Nem sempre é possível que essa vítima consiga denunciar esse agressor ou agressora. Então, em uma situação de praça pública ou uma via pública, a população LGBTQIA+ raramente encontra ajuda. Quando essa vítima chama a polícia, esse agressor ou agressora não está mais lá, e como é uma violência gratuita, a vítima não conhece esse agressor, e isso impede o andamento de um processo legal”, explica o diretor-presidente.
Bastos destaca a importância de entender que toda pessoa LGBTQIA+ sofre ou já sofreu algum tipo de preconceito. Ele conclui que a conscientização e a divulgação de que a LGBTfobia é crime e de que há uma tipificação penal específica é essencial para essa população contar com proteção legal.
HISTÓRICO VIOLENTO
João Victor Rossi contextualiza que Mato Grosso do Sul tem eventos originários que reverberam violências até hoje. O pesquisador argumenta que os detalhes apontam que a região tem especificidades, como a forte influência do agronegócio, que se tornam palco para falas, comportamentos e feitos políticos que desconsideram a pluralidade.
“A começar pela sua criação, durante a Ditadura Civil Militar, por meio da Lei Complementar n° 31, de 1977, criada pelo então ditador Ernesto Geisel, mantido como nome de uma grande avenida central da Capital. Ressalto também a colonização e todo o processo racista e xenofóbico encarado pelos povos indígenas, que demonstra uma materialização diária de ataques à diversidade cultural presente”, completa Rossi.
O antropólogo frisa também a história mais recente, com o governo anterior, presidido por Jair Messias Bolsonaro, que repercutia discursos “repletos de retrocessos”, com falas que feriam diversas minorias.
“Se não há uma mudança estrutural dentro de nossa sociedade, não há como esperar que a violência e os descasos diminuam. Destacando eventos históricos de alguns anos atrás, não há como se esquecer do passado ainda presente. Considero este ‘aumento’ a reprodução de um ciclo vicioso reproduzido historicamente, e não um dado específico referente à atualidade, então é um conjunto de fatores que alertam a necessidade de discussões e de mudanças no Estado, em especial”, conclui o antropólogo.
Fonte:CE