Em Mato Grosso do Sul, pelo menos 17 crianças ficaram órfãs em decorrência do assassinato da mãe por crime de feminicídio.
Levantamento feito pelo Correio do Estado conseguiu informações sobre 20 dos 28 crimes deste tipo que ocorreram no Estado entre janeiro e junho deste ano e constatou que oito das vítimas identificadas eram mães. Muitas delas eram progenitoras de mais de um filho, e este, na maioria dos casos, era menor de idade.
Segundo o levantamento, a maioria das crianças órfãs tem entre 1 e 5 anos. Também apareceram na apuração crianças com seis e nove anos e um adolescente de 17 anos.
Além do índice alarmante, a brutalidade registrada e a presença das crianças na cena do crime – ou seja, que presenciaram a mãe ser vitimada por ex-companheiros, parentes ou namorados – chocaram familiares, autoridades e principalmente os próprios filhos, agora órfãos do feminicídio, visto que o pai está foragido ou preso.
O cenário alimenta a dúvida popular: quem protege e dá assistência aos órfãos do feminicídio no Estado e na capital sul-mato-grossense?
De acordo com o Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, apesar de projetos e da própria Lei Municipal nº 6.801, sancionada apenas em 5 de abril de 2022 e que prevê atenção e proteção às crianças e aos adolescentes e seus responsáveis legais, também vítimas diretas do feminicídio, há lacunas que ainda precisam ser preenchidas e compreendidas e estão sendo analisadas no quesito cumprimento da norma.
De acordo com a defensora Edmeiry Silara Broch Festi, da 2º Defensoria Pública de Defesa da Mulher, o órgão se dedicou a aprofundar as informações sobre o assunto, ouvindo o Estado e município, tanto na área de mulher quanto na da saúde e da assistência social e decorrente do procedimento administrativo de apuração (PAP).
“Com o advento da lei, ela direcionou o processo. Em vez de ter uma decisão no processo judicial determinando as obrigações e os direitos, a lei veio resolver e agora a obrigação é legal, só precisamos formar e documentar as diretrizes”, disse Festi.
O órgão pesquisa sobre o atendimento de crianças e adolescentes, filhos de mulheres vítimas de violência doméstica, com ênfase nos casos de feminicídio desde 2019, quando o setor percebeu as falhas da rede de atendimento. Desde então, articula um grupo intitulado “estudos de casos concretos” para direcionar o procedimento.
“O processo começou diante de declarações de mulheres que buscavam atendimento na área da saúde, para os filhos e toda família que presenciava ou presenciou a violência. Durante esse período, foi apurado que, realmente, estava havendo essa defasagem, a necessidade da intervenção da defensoria pública. Porque o atendimento aos filhos das mulheres não estava acontecendo”, pontuou.
Um dos problemas constatados pela defensoria ocorre em virtude da falta de comunicação integrada da rede de defesa da mulher, ou seja, canais de atendimento nos quais as informações são relatadas e que, por inúmeros motivos, podem não ser de conhecimento do setor responsável.
A assistente social da Defensoria Elaine de Oliveira França ressaltou que os procolos que estão sendo criados pretendem sanar justamente essa dificuldade.
“A rede, na verdade, precisa sempre estar sendo provocada para que aconteçam esses atendimentos. São famílias que estão em situação de vulnerabilidade, então, pode faltar até mesmo um vale-transporte para trazer essa criança para o acompanhamento. Seja qual for a porta de entrada, todos os setores serão provocados para o atendimento”, disse.
Segundo França, a preocupação não se restringe à assistência aos órfãos e às vítimas, mas também à família que receberá a criança.
“Também pode ser uma família que está em vulnerabilidade. Então, pode ser um parente, mas ele também pode ter uma situação socioeconômica muito difícil. Sendo assim, a família também precisa ter esse aparato para estar recebendo o filho ou os filhos dessa mãe que perdeu a vida”, acrescentou.
PARA ONDE ELAS VÃO?
De acordo com a Defensora Edmeiry Silara Broch Festi, a melhor alternativa para a criança é que ela fique com a família, com alguém com quem já tenha convivência, pois colocá-la em um ambiente novo é condicioná-la ao sofrimento duplo. Uma vez pela ausência da mãe, outra, pela quebra do ciclo familiar.
Entretanto, quando não há parentes da criança ou do adolescente, a responsabilidade recai sobre o município.
“Se houver família, ela fica com a criança, então a defensoria entra para dar auxílio para essa família que de imediato ficou com a criança e regulariza a situação. Mas, geralmente, a família acolhe. Normalmente, é irmã, tia, avó materna ou paterna. Em último caso ela vai para a casa de acolhimento e adoção”, evidenciou.
A defensora não se recordou de nenhum caso em Campo Grande no qual a criança ou o adolescente precisou ser encaminhado para casas de acolhimento. França acrescenta que cabe à família procurar os órgãos responsáveis.
“Estamos entendendo que essa pessoa que ficou responsável pelo filho pode ir direto no Cras, por exemplo, para pedir a inclusão no Auxílio Brasil. Lá, eles vão pedir a certidão dele e então ela vem até a defensoria. É a família que sempre que vai estar procurando. Aí está a importância de uma rede integrada”, finalizou.
PSICOLÓGICO
A psicóloga Keila de Oliveira Antônio, da Nudem, evidenciou que crianças presenciarem o crime de feminicídio é cada vez mais recorrente e que o cenário é preocupante.
“Temos um caso bem recorrente de que a criança precisou pedir socorro, saiu cheia de sangue na rua. Como fica essa situação de medo, tanto da situação como do pai que fez isso com a mãe?”, questionou.
Conforme a profissional, a vivência de um episódio tão traumático pode acarretar uma série de transtornos.
“As consequências vão depender muito da faixa etária da criança, do histórico, se for mais adolescente pode desencadear depressão, ansiedade, automutilação. A gente, infelizmente, vê de tudo, porque é inevitável que isso não deixe sequelas. Há pessoas que vão ficar com dificuldade de se relacionar, de dizer o que pensam, e vai ter gente que vai agredir, que vai ficar doente”, pontuou.
Keila de Oliveira frisou que é importante que os órfãos sejam visibilizados. “Vai ser muito bom para esse público. Muitas vezes, ele era desconsiderado, silenciado. Olhava-se o processo, olhava-se a penalização do agressor, mas muitas vezes a criança ou o adolescente era deixado de lado”.
A psicóloga declarou que o alto índice de feminicídio no Estado se dá pelo fato de as pessoas ainda não o reconhecerem como um crime, pela cultura de uma geração e pelo machismo.
“Empresas se instalam nos municípios pequenos, vêm um monte de homens que já carregam essa educação de que ‘eu estou sozinho, eu tenho que me servir das mulheres que estão ali’. Também tem o machismo, mas Mato Grosso do Sul, no meu ponto de vista, é um estado extremamente conservador, que tem algumas falácias e até contradições, e ao mesmo tempo em que é superconservador tem um falso moralismo extremo”, ressaltou.
Como já noticiado pelo Correio do Estado, por ano, mais de 9 mil boletins de ocorrência são registrados por mulheres vítimas de violência.
SAIBA
Foi aprovado na Assembleia Legislativa do Estado, na quinta-feira (7), o projeto de lei que institui o atendimento especializado aos órfãos do feminicídio em Mato Grosso do Sul.
A medida garante assistência multidisciplinar, jurídica, alimentar, educacional e assistencial para crianças e adolescentes dependentes de mulheres vítimas de violência doméstica. O texto foi aprovado por unanimidade pelos deputados estaduais e segue agora para a segunda discussão e votação.
Se for novamente aprovado, o projeto seguirá para sanção do governador de Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja. Segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, já são 28 vítimas do crime.
Fonte:CE