Para contar essa história seu Hélio precisa somente do que guarda naquela sacola. Uma folha de caderno preenchida frente e verso, rasurada, guarda o nome de cada uma das árvores que estão lá e mostra o saldo da plantação ano a ano. Dois álbuns abarrotados de fotos revelam a transformação de uma área abandonada em uma linha contínua verde que nem o drone lá do alto consegue registrar direito onde começa e onde termina.
Natural de Promissão, no interior de São Paulo, seu Hélio se mudou para a Penha ainda garoto, em 1958. Estudou, trabalhou, criou os filhos e hoje brinca com os netos na região. Sempre gostou de caminhar pela Avenida Carvalho Pinto e vivia incomodado com o abandono que era o canteiro central, às margens do poluído Rio Tiquatira. Depois de se estabelecer profissionalmente, decidiu agir.
Comprou de cara 200 mudas e foi lá plantar. Uma turma não gostou da ideia e arrancou tudo na madrugada seguinte. Seu Hélio insistiu. Voltou uns dias depois com 400 árvores. Jogaram fora novamente. Aí ele se revoltou. “Pensei: ‘está bom, agora vou cansar esses filhas da mãe de destruir árvore. Vou plantar 5 mil’.”
Foi em meio a essa insistência que o Grupo Estado começou a acompanhar a saga de Seu Hélio. Em 2004, o Jornal da Tarde foi o primeiro a noticiar a história. Nesse período, o gerente comercial estava sendo incomodado por um antigo dono de loja da região, que chegou a ameaçá-lo. O inimigo das árvores usava o local de estacionamento e dizia que a vegetação iria atrapalhar a visualização de sua fachada.
Moradores da região ficaram do lado de seu Hélio. Usuários de drogas no descampado também gostaram da ideia de ter uma sombra no local e ajudaram a tomar conta das árvores. Aquele comerciante recuou. Seu Hélio avançou. As economias de uma vida dedicada a área de marketing e vendas viraram mudas. Começaram pequenos mutirões para plantar. Nada grandioso, mas aos poucos a região foi sendo transformada.
Tudo era feito geralmente nos finais de semana. Seu Hélio ainda precisava trabalhar. Depois de 25 anos à frente das vendas da Coopersucar, ele ajudou a montar um negócio para produzir açúcar e álcool orgânicos, a Native, onde trabalha há 21 anos. “Lá na empresa sou só um trabalhador. Aqui no meio das árvores é onde estou e pretendo estar até o resto da vida.”
A única informação que ele não guarda em sua sacola é de quanto já gastou, ou melhor, investiu, com terra, adubo, ferramentas e mudas. “Em um ano, foram R$ 29 mil, em outro, R$ 32 mil, no início foi menos. Melhor não calcular essas coisas.”
Isso sem contar o dinheiro que distribui para o pessoal que fica de bobeira no parque. Em troca, Seu Hélio pede para ajudar na plantação. Apesar de não ter uma formação na área biológica, criou critérios técnicos para reflorestar o local. O conhecimento veio de pesquisar em casa e de sair por aí perguntando. Em qualquer lugar, podia ser em uma viagem com a família, em uma ida aos fornecedores das mudas no interior de São Paulo ou para quem aparecesse para conversar sobre o assunto.
As árvores do parque são distribuídas em linhas retas, acompanhando a margem do rio. Uma muda é plantada a cada cinco passos, em um buraco de 60cm x 40 cm. Um pouco de terra fofa é colocada no fundo para as raízes se espalharem com maior facilidade. A botina pisa bem rente ao tronco para fixar melhor e evitar que o vento e a chuva derrubem a nova habitante. “A cada 12 mudas, obrigatoriamente, uma tem que ser frutífera. É regra, assim atrai os pássaros.”
Seu Hélio caminha e vai apontando para sua obra, quase todas árvores nativas da Mata Atlântica. “Ingá, Quaresmeira, Babosa, Jequitibá branco, Aroeira, Salsa… Amassa essa folha aqui e cheira. Não parece alho? É a Pau D’Alho. Os índios enrolavam no peixe para temperar”, ensina. Ao notar um ponto de referência, abre o álbum de fotos. “Está vendo o prédio ali, olha como era em 2003. Agora você nem vê ele direito, as árvores tamparam.”
O carinho que o gerente comercial tem com a região começou a ser reconhecido oficialmente em 2007, quando o espaço recebeu o status de parque linear, o primeiro do município. Ele encontra esse momento no álbum e se mostra na imagem ao lado de diversos políticos. Foi nesse período que conseguiu bater a meta das 5 mil árvores. “O que fiz foi trazer elas de volta. Podem não acreditar, mas quando as trouxe o solo as reconheceu e tudo se transformou. É lúdico o negócio. Aqui era terra de ninguém e agora é isso aí.”
A ação de fato mudou completamente o local. Segundo seu Hélio, houve uma valorização dos imóveis em cerca de 30%. A temperatura também ficou mais amena. Do meio da avenida para a parte central do parque há uma diferença de 5ºC. As árvores trouxeram pássaros. São dezenas de espécies que agora vivem ali. O índice de criminalidade diminuiu, as pessoas começaram a praticar mais atividades físicas. “Ouço cada história. Tem gente que me agradece toda vez e diz que o parque salvou sua vida. A pessoa andava depressiva, trancada em casa e agora vem aqui todo dia.”
De acordo com a organização do parque, circulam em média 700 pessoas por dia no local. Nos finais de semana, a esposa e os filhos já desistiram de acompanhar seu Hélio. O Plantador de Árvores, como ficou conhecido na região, é parado o tempo inteiro para uma conversa. Alguém sempre aparece com novos planos para aquela área toda.
Ele dá risada e diz que a família têm certo ciúmes das árvores. Seu Hélio conta que resolve quase todos os problemas conversando com essas amigas. “Agradeço a elas e elas me agradecem. A gente tem esse diálogo. Elas escutam tudo, está provado”. Os 70 anos de idade também parecem sumir quando ele está por ali. Em um piscar de olhos, seu Hélio firma a mão em um galho, alcança o pé em outro e quando vai ver, já está no alto do Jatobá. “Vai ali, por favor, e tira uma foto com meu celular.”
A meta atual de seu Helio é conseguir manter a média de três mil árvores plantadas por ano. A pandemia, ele diz, dificultou um pouco seu trabalho. Mas não tem problema. Ele aproveita cada ida para plantar ao menos uma muda. Durante a entrevista, ele entregou ao repórter e ao fotógrafo uma árvore para cada. Em seguida, escolheu o lugar, ajudou a cavar e orientou para que nada fugisse ao protocolo. Então, tirou o celular da sacola, bateu uma foto e avisou. “Daqui uns anos vocês voltam e a gente faz outra para mostrar a diferença.”
Fonte: Estadão