Uma fazenda no Mato Grosso, multada em R$ 2,2 milhões pelo Ibama por desmatamento ilegal, teria usado os serviços de transporte da JBS para transferir gado para outra propriedade “ficha-limpa”, que depois abastecia os frigoríficos da empresa – prática que é conhecida como ‘triangulação do gado’.
Uma investigação conjunta da Repórter Brasil, do The Bureau of Investigative Journalism e do jornal britânico The Guardian encontrou evidências de que os bovinos criados na fazenda com área embargada, onde a pecuária não é permitida, tiveram como destino outra propriedade do mesmo dono, que por sua vez vendeu gado a dois abatedouros da JBS.
Maior produtora de proteína animal do mundo, a JBS assumiu há mais de dez anos o compromisso de erradicar o desmatamento em toda sua cadeia de fornecimento na Amazônia. A empresa afirma adotar essa política para todas as pastagens que fornecem gado diretamente aos seus frigoríficos. Ao mesmo tempo, alega não ter acesso a informações adequadas para rastrear as propriedades que transferem gado aos seus fornecedores diretos (os chamados fornecedores indiretos).
No entanto, em alguns casos os próprios caminhões da JBS realizam o transporte dos animais entre estas fazendas. O episódio apurado pela reportagem mostra evidências de que a empresa transportou, dessa forma, bois oriundos de propriedade com registro de desmatamento ilegal.
Procurada, a JBS afirmou que suas atividades de transporte seguem a política de sustentabilidade da empresa, compromisso que inclui não adquirir animais vindos de fazendas com áreas embargadas pelo Ibama por conta do desmatamento.
“A empresa esclarece que o serviço de logística e transporte fornecido e executado, de forma independente, deve atender às mesmas políticas de sustentabilidade da empresa, incluindo o bloqueio das fazendas que não estejam em conformidade com essas políticas”, informou a empresa.
“A JBS não pode continuar se escondendo atrás da desculpa de que as informações de seus fornecedores indiretos não estão disponíveis ou são muito complexas”, diz Richard Pearshouse, diretor de Crises e Meio Ambiente da Anistia Internacional.
“Essa nova investigação mostra que a JBS conhece alguns de seus fornecedores indiretos – seus próprios caminhões estão visitando essas fazendas para transportar gado. A JBS está ciente desses problemas desde pelo menos 2009, mas ainda não possui um sistema eficaz para impedir que o gado de pasto ilegal entre em sua cadeia produtiva”, lamenta.
A falta de monitoramento dos fornecedores indiretos é um dos principais obstáculos para combater o desmatamento na pecuária amazônica. Desde 2009, a JBS assumiu o compromisso de criar mecanismos para rastrear estas fazendas, mas afirma que ainda não obteve sucesso em implementar sistemas de rastreabilidade.
O caso vem à tona no momento em que a JBS expande e anuncia a modernização das suas atividades logísticas.
A empresa tem intensificado o transporte de “gado magro”, como é chamado o animal que é levado de uma fazenda para a outra com o fim de engordar antes de ser vendido aos frigoríficos.
Neste mês, a JBS Transportadora, braço logístico da empresa, também lançou o aplicativo Uboi, serviço em que os pecuaristas poderão pedir pelo celular o transporte de gado feito pela JBS.
“Não dá para dizer que eles foram omissos, porque a integração de dados entre diferentes partes da empresa não é automática. Mas, tendo essa nova ferramenta em mãos [a Uboi], a JBS está muito mais perto de enxergar a cadeia produtiva como um todo. Eles têm uma grande oportunidade para fazer uma grande diferença no mercado”, diz Mauro Amerlin, diretor executivo da Amigos da Terra, organização que coordena grupos de trabalho sobre os fornecedores indiretos junto às empresas.
Da área desmatada ao frigorífico
A fazenda onde ocorreu o desmatamento é de propriedade de membros da família Rodrigues da Cunha. Em seu site, o patriarca da família, Antônio Ronaldo Rodrigues da Cunha, se descreve como “dono de um dos maiores rebanhos comerciais do Brasil, com 102 mil cabeças distribuídas em onze fazendas próprias e sete arrendadas no Mato Grosso”.
Além de vender gado diretamente para os frigoríficos, a família também faz melhoramento genético de animais e a sua venda em leilões.
A família é a quarta maior vendedora de touros do país, de acordo com ranking feito pela imprensa especializada do setor. O último grande leilão realizado pela empresa, em 2019, contou com o patrocínio da própria JBS e alegou ter angariado mais de R$ 10 milhões.
O gado teve origem em uma das propriedades da família, a fazenda Estrela do Aripuanã, na cidade de Aripuanã (MT).
Em 2012, a fazenda recebeu uma multa de R$ 2,2 milhões do Ibama pelo desmatamento ilegal de 1,5 mil hectares – área equivalente ao tamanho da cidade de São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo. O embargo abrange 39% da área da fazenda.
A Repórter Brasil apurou que, entre junho de 2018 e julho de 2019, o pecuarista Ronaldo Venceslau Rodrigues da Cunha encaminhou milhares de animais desta fazenda desmatada para outra propriedade sua em Brasnorte (MT), a Fazenda Estrela do Sangue.
Desta segunda fazenda, onde não há pendências ambientais, foram feitas vendas para duas unidades da JBS, em Juína (MT) e Juara (MT).
Com essa transferência entre propriedades, os animais criados em área desmatada poderiam ser vendidos aos abatedouros sem mostrar sua origem.
Uma postagem de Facebook feita por um motorista da JBS Transportadora evidencia que a empresa foi responsável, ao menos em um caso, pelo transporte dos animais entre as duas fazendas.
Na postagem, o funcionário da empresa divulgou fotos de caminhões com o logotipo da JBS, fez um “check in” na fazenda onde aconteceu o desmatamento ilegal e afirmou que estava transportando gado entre as duas fazendas, citando-as nominalmente.
A propriedade também teve focos de queimada em 2018 e 2019, segundo dados de satélite da NASA. Segundo a Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso, não havia qualquer autorização para que a queimada fosse realizada dentro da área da fazenda.
Fonte:UOL