Buddy Guy: ‘Sou o último velho tocando blues’

No seu lugar de sempre — o banquinho com “BG” nas costas, bem em uma das pontas do bar — o dono do Buddy Guy’s Legends observa as centenas de pessoas que enchem seu clube. Tirando a máscara da época da pandemia que ele ainda usa em eventos públicos, ele se inclina para a frente e olha em direção ao palco, a alguns metros dali. “Daqui a uma hora”, ele diz, “talvez eu tome um drink e suba lá”.

Em certo nível, esta noite de meio de verão é apenas mais uma no clube e restaurante de blues que Buddy Guy abriu em Chicago há mais de 35 anos. As mesas sobre o chão quadriculado amarelo e azul voltam a se encher de turistas, caras tatuados, casais jovens e fãs de blues de todos os tipos. As paredes continuam forradas de fotos de Guy no palco e fora dele com seus discípulos (Eric ClaptonStevie Ray Vaughan) e seus heróis (B. B. King, Muddy Waters). Os funcionários no balcão de merchandising perto da entrada se preparam para vender camisetas, bonés e outros souvenirs com a imagem de Guy ou o logo do clube.

Quando não está na estrada, Guy aparece no clube regularmente, em parte para manter tudo sob controle, mas também para impulsionar o negócio, já que clientes às vezes vão na esperança de que ele suba ao palco, esteja ou não na programação. Mas hoje não é apenas mais um show; como anuncia a faixa pendurada sobre o bar, é seu aniversário, o de número 89. Olhando para Guy, mal dá para notar: sua pele é lisa, e ele parece enxuto e ágil no paletó de bolinhas sobre uma camiseta branca, usando um de seus tradicionais bonés brancos. Fãs se aproximam para desejar feliz aniversário e lhe dar um soquinho casual. Guy agradece rapidamente, depois faz um sinal ao bartender, que traz uma garrafa do conhaque favorito dele.

Alguns dos presentes provavelmente acompanham Guy há décadas; outros podem conhecê-lo como a versão mais velha de Sammie Moore nas cenas finais de Pecadores, o aclamado e campeão de bilheteria filme de blues e vampiros dirigido por Ryan Coogler. “Parece que toda vez que vou ao supermercado eu ouço: ‘Ele parece aquele cara de Pecadores’”, diz Guy, sorrindo, à Rolling Stone. Saindo devagar do banquinho, ele vai até a área do merch para começar a autografar cópias de seu álbum recém-lançado, Ain’t Done With the Blues, e posar para selfies com os fãs formados em fila até a porta.

Mas após uma hora, seu trabalho na noite está só começando. Chamado ao palco, ele recebe um bolo de aniversário com velas de alguns de seus oito filhos adultos e vários netos reunidos ao redor. Enquanto a banda da casa entra em um groove blueseiro, os familiares deixam o palco, mas Guy permanece — e o senhor reservado e idoso no bar se transforma no Buddy Guy astuto e insinuante da lenda. “Se você não me ama, talvez sua irmã ame!”, ele rosna, arrancando risadas e aplausos. Após meia hora, ele volta ao balcão de merch para retomar os autógrafos e selfies, mas a plateia quer mais música. Quando passam um microfone para o lado dele do clube, Guy continua de onde parou no palco, desta vez caminhando pelo meio da multidão e conclamando por mais blues. Ele só vai embora às 2h da manhã.

Ver Guy convocar a energia de alguém décadas mais jovem é impressionante, até para a família. “A gente sempre pensa: ‘Meu Deus — ele é velho, vai cair’”, diz sua filha Shawnna Guy, artista de hip hop desde os anos 1990. “Aí você olha para ele no palco, e ele está lá pulando de um lado para o outro, batendo nas cordas com uma toalha de rosto, depois coloca a guitarra atrás da cabeça e toca com uma baqueta. E você pensa: ‘Por que eu estava preocupada?’ Eu nem consigo fazer isso!”

A continuidade da carreira de Guy — Ain’t Done With the Blues é seu 20º disco de estúdio, e ele partiria para uma série de shows na Costa Oeste poucas semanas depois do nosso encontro — não era necessariamente o desfecho que ele ou qualquer um previa. Nas primeiras décadas de sua carreira, ele era frequentemente ignorado e subestimado pela indústria musical. Mas agora, os pioneiros do blues que o inspiraram — KingWatersHowlin’ WolfGuitar Slim e tantos outros — já se foram, assim como muitos que aprenderam com ele, de Jeff Beck a VaughanGuy, o resistente do blues que nunca conseguia uma chance, sobreviveu a todos eles.

“Sou o último velho ainda andando e tocando blues”, ele diz. “Era isso que conversávamos com Muddy [Waters] e Howlin’ Wolf antes de eles morrerem. Eles diziam: ‘Buddy, por favor, mantenha o blues vivo.’ E eu estou tentando.” Como diz o jovem guitarrista de blues Christone “Kingfish” Ingram, “No blues mainstream, ele é o último OG.”

Um dos segredos da sobrevivência de Guy é que ele nunca foi um purista do blues. Desde seus primeiros compactos e seu primeiro álbum, Left My Blues in San Francisco, de 1967, ele misturava soul, power chords de rock e R&B enérgico ao blues, além de um estilo irrestrito de tocar guitarra e um lamento vocal intenso que sempre parecia prestes a sair do controle, mas nunca saía. Sua recente sequência de álbuns está cheia de participações especiais vindas de todos os cantos da música (Mick JaggerKeith UrbanKid Rock, entre muitos) e traz um som alto, elétrico, pronto para o rádio; Ain’t Done With the Blues, recém-indicado ao Grammy de Melhor Álbum de Blues Tradicional, o coloca ao lado de IngramJoe Walsh e Peter Frampton. Como diz Bruce Iglauer, do selo de blues Alligator: “Buddy basicamente deu uma pegada de rock ao blues, mantendo a alma do blues na música. Não sei se alguém mais fez isso. Talvez ele sinta que é o último cavaleiro da armadura, e que parte de seu trabalho não é repetir a tradição, mas trazer a tradição para um contexto mais moderno.”

Graças em parte a Pecadores e a músicos como Ingram, o blues parece estar em melhor forma do que há algum tempo; Ingram, por exemplo, criou um selo independente para estimular novos talentos na área. “Tenho visto muitos jovens artistas negros surgindo e tocando essa música, ou músicas baseadas nesse gênero”, ele diz. “As pessoas estão buscando música mais autêntica”.

Mas, quando perdemos Guy, não veremos apenas a morte de um músico que levou a guitarra de blues a novos e inventivos patamares, influenciou todo mundo — dos Rolling Stones e Clapton a Vaughan e Ingram — e conseguiu um raro segundo ato no mundo da música. Também estaremos perdendo um elo vital com as raízes do gênero e com o pano de fundo cultural de onde o blues surgiu. Simplesmente, nunca veremos alguém como Guy novamente. “Temos que aceitar que esses artistas mais jovens não cresceram como meeiros, não cresceram durante o Movimento dos Direitos Civis”, diz Shawnna. “Então as histórias deles não vão ser parecidas”.

Ninguém sabe disso melhor que Guy. Ele já tocou ou encontrou três presidentes, embora não o atual ocupante da Casa Branca, a quem vê com ceticismo. (“O homem é rico, muito rico, tem campos de golfe aqui e ali e tudo mais”, diz Guy. “Ele não está com o homem pobre”, acrescentando ironicamente. “E ele está pensando em mim e em você”.) Guy lembra da noite de 2012 em que esteve na Casa Branca, parte de uma homenagem ao blues durante o primeiro mandato do presidente Obama. “Sabe, eu fiz uma piada sobre isso”, diz Guy, sorrindo. “Eu disse que estava colhendo algodão na fazenda com uma latrina no quintal, e fui até a Casa Branca. Algumas pessoas riram disso, mas é verdade, cara. Eu digo às pessoas: ‘Poucos de vocês sabem o que é uma latrina.’”

Longo caminho até o sucesso

Por pelo menos as últimas três décadas, o blues tem sido generoso com Buddy Guy — algo amplamente evidente em seu complexo em Orland Park, nos arredores de Chicago. Escondida em um bosque de árvores em um terreno de cinco acres, a propriedade inclui uma casa com cinco quartos, uma piscina interna e uma residência particular para o caseiro. Em sua cozinha, equipada com prateleiras repletas de seus temperos favoritos, um buquê de rosas brancas de aniversário chegou enviado por Carlos Santana, junto com um cartão de Coogler e sua esposa, Zinzi. “Como você vê”, diz Guy, sentado à sua mesa de jantar banhada de luz de claraboia na manhã após sua festa de aniversário no Legends, “eu tenho uma mesa de sinuca lá embaixo. Eu cresci na fazenda. Não existe mesa de sinuca na fazenda, cara. Você tinha um buraco onde cortava algodão. Esse era o único taco que eu tinha.”

Como de costume, Guy já estava de pé desde cedo — por volta das cinco da manhã — o que significa que dormiu apenas três horas. Essa rotina é outro lembrete da vida que teve, quase um século atrás, crescendo em uma cabana em uma plantação sem água encanada e com janelas de madeira (não de vidro). Nascido George Guy em Lettsworth, Louisiana, em 1936, ele cresceu em uma família de meeiros que entregava metade de sua produção aos proprietários de terra, passando os dias colhendo algodão sob um calor brutal. “Chegava a 44°C todo dia em junho, julho e agosto, e tudo o que a gente tinha era um maldito chapéu de palha enorme”, diz ele, usando outro de seus bonés brancos e, desta vez, uma jaqueta xadrez. “Quando o dia clareava, você levava sua bunda pra lá e voltava pra casa pra entrar na banheira e estar pronto para fazer tudo de novo no dia seguinte”.

No começo, a casa dos Guy não tinha eletricidade — o que significava nem rádio, nem vitrola. Mas a vida de Buddy começou a mudar quando, aos 13 anos, ele ouviu um trabalhador rural tocar “Boogie Chillen”, de John Lee Hooker, em um violão, e depois ensinou o jovem Buddy a tocar também. Logo depois, Guy se envolveu ainda mais com a música ao ver Lightnin’ Slim tocar em um bar. Seu primeiro violão, que seu pai comprou, tinha apenas duas cordas.

Mudando-se para Baton Rouge, Louisiana, em 1951, Guy trabalhou em uma esteira de fábrica e depois como zelador na Louisiana State University enquanto começava a tocar em bares de beira de estrada; outro ídolo inicial, Guitar Slim, o inspirou a arrancar notas dilacerantes do instrumento. Ao se mudar para Chicago em 25 de setembro de 1957 — uma data que ele lembra tão bem que a repete várias vezes ao longo de dois dias de conversa — encontrou trabalho em clubes e gravou para um selo de blues local, a Cobra. Um dia decisivo, ele levou uma fita com músicas que havia gravado em uma rádio da Louisiana para a Chess Records, o principal selo de blues de Chicago.

Guy passou a trabalhar como guitarrista de estúdio, capaz de acompanhar qualquer um, de Muddy Waters a Koko Taylor (ouça sua participação em “Wang Dang Doodle”) e Howlin’ Wolf (o mesmo em “Killing Floor”). “Eles ligavam pra minha casa porque não conseguiam fazer aquele guitarrista tocar o ritmo que queriam”, diz ele. “Diziam: ‘Se vocês querem que fique bom, chamem Buddy Guy’.” Mas ele também passou a desenvolver suas próprias invenções. Durante um intervalo em um show, colocou a guitarra no chão e esqueceu de desligá-la; uma cliente que passava esbarrou o vestido no instrumento, produzindo um som alegre e levando Guy a explorar distorção e reverberação. Sua presença de palco também começou a ganhar intensidade. Do palco, ele não apenas descia para a plateia — às vezes ia até para fora do clube ou para dentro dos banheiros, ainda tocando, com o cabo da guitarra arrastando atrás. “Quando tudo era tão tradicional, ele apareceu com um som diferente, sendo selvagem e imprevisível”, diz Ingram. “Eu gosto de creditá-lo como o precursor desse som blues-rock; Jimi [Hendrix] viu isso e levou tudo a outro nível”.

Chess começou a lançar singles de Guy, como a incendiária “First Time I Met the Blues”, de 1960, mas sua passagem pelo selo acabou sendo uma entre várias oportunidades perdidas na carreira. Leonard e Phil Chess, que comandavam a gravadora, não sabiam exatamente o que fazer com o jovem Guy. “O som dominante da guitarra blues na época era o mais controlado de B. B. King ou Albert King, em vez dessa pegada mais rockeira”, diz Iglauer, que depois lançaria um dos álbuns mais intensos de GuyStone Crazy. “Naquela época, Buddy estava tentando ser um pouco mais ousado do que a Chess permitiria.”

Chess pressionou Guy a gravar discos de jazz ou faixas de humor (como “Gully Hully”, algo como um surf music de Chicago), mas nada pegou, e Guy já disse que Leonard Chess achava que sua guitarra soava como “barulho”. Guy também afirma que os irmãos Chess queriam mudar seu sobrenome para “King” para fazê-lo parecer parente de B. B. ou AlbertMarshall Chess, filho de Leonard e também veterano da indústria musical, admite que os irmãos não apreciavam totalmente a abordagem de Guy e preferiam mantê-lo como músico de apoio. “Existe um boato de que meu pai não gostava de como Buddy tocava”, ele diz. “Isso não é verdade. Meu pai era muito supersticioso com as bandas de apoio e não gostava de mudar nada quando já tinha tido hits com o que funcionava antes. Eu nunca soube o quão brilhante Buddy era. Acho que ninguém na Chess sabia.” Guy também era desrespeitado em outros lugares, como quando apareceu na TV britânica e foi apresentado como Chuck Berry. Para pagar as contas, arranjou um emprego em uma empresa de reboque.

Aqueles tempos também foram difíceis de outras maneiras. Tom Hambridge, baterista e produtor que guiaria os álbuns mais recentes de Guy, certa vez o visitou em um camarim e viu quando Guy devolveu uma garrafa cara de conhaque Rémy Martin XO que estava ali aberta para ele. Depois de vê-lo fazer o mesmo em outras ocasiões, Hambridge finalmente perguntou o motivo. Em um lembrete do racismo que assombrava artistas de blues, Guy contou que um lacre rompido podia indicar perigo. Como Hambridge recorda: “Ele disse: ‘Porque já fui envenenado antes. Naquela época, eles cuspiam ou mijavam na bebida.’ Ele disse que já passou mal antes, então a garrafa precisa estar lacrada na caixa.”

Como aconteceria depois com artistas de Hendrix a Lana Del Rey, seria preciso outro país para impulsionar a carreira de Guy. Rádios negras nos EUA o ignoravam, mas ele se tornou um herói para uma geração de jovens músicos britânicos apaixonados por blues, encantados por sua combinação de agressividade, distorção e presença de palco. Guy lembra de ter visto “um rosto branco” em um de seus shows e achado que fosse um policial; mas, diz ele, rindo, “era o Eric Clapton!” Como Clapton escreveria mais tarde: “Ele criou um som enorme e poderoso, que me deixou atordoado… Ele era como um dançarino com sua guitarra, tocando com os pés, com a língua, jogando o instrumento pelo salão.”

Jeff BeckKeith RichardsJagger e muitos outros também reverenciavam Buddy. (Anos depois, Jimmy Page, outro discípulo, disse ao filho de GuyGreg, que Buddy era “o deus da guitarra”.) No começo, Guy não sabia o que pensar da contracultura que o abraçou nos anos 1960. “Eu vi os Stones chegando de salto alto, parecendo quase uma mulher”, ele lembra. “Eu dizia: ‘O que é isso?’ Cheguei a San Francisco e disse: ‘Cara, olha isso.’ Eu não sabia o que era um hippie. Vi homens de cabelo comprido. Mas eles enlouqueciam [com minha música], cara: ‘O que você tem nesse amplificador?’”

Mas os golpes de azar continuaram. No fim dos anos 1960, Guy e seu então parceiro, o gaitista Junior Wells, tornaram-se uma dupla imperdível e receberam a oferta de gravar um álbum produzido por Clapton. Mas, em meio ao vício em heroína, Clapton abandonou o projeto, e o álbum ficou engavetado por dois anos antes de ser lançado e receber pouca atenção. No início dos anos 1970, Guy já não tinha um contrato de gravação e decidiu abrir seu próprio clube, o Checkerboard Lounge, na Zona Sul de Chicago. “Sem um disco, está ficando difícil encontrar lugares para tocar”, disse ele na época. Ele frequentemente se apresentava no Checkerboard, mas amigos, clientes e até familiares estavam igualmente acostumados a vê-lo varrendo o chão, fazendo inventário ou preparando o palco para outros artistas.

Às vezes, nem os filhos sabiam direito o que o pai fazia da vida — apenas que ele viajava a trabalho e voltava com dinheiro suficiente para pilhas de presentes de Natal. Colegas de escola de Greg Guy perguntavam se o “Buddy Guy” que aparecia com os Rolling Stones — que o contrataram, junto com Wells, como ato de abertura na turnê europeia de 1970 — era seu pai, e ele não tinha certeza; para ele, o pai era apenas George. Em uma festa de quarteirão nos anos 1980, Greg lembra de ouvir uma música alta saindo das caixas de som e, sem saber o que era, decidiu acabar com aquilo. “Tirei o disco da vitrola e joguei”, ele diz. “Eu não queria ouvir.” Acontece que era um dos discos do pai. Greg queria ouvir Prince.

Um belo segundo ato

Numa sala de lazer da casa de Guy, os souvenires de seu sucesso estão em exibição. Além de seus muitos prêmios — incluindo oito Grammys e uma Medalha Nacional das Artes — há uma placa proclamando parte da Rodovia 418, na Louisiana, como “Buddy Guy Way”; uma carta de agradecimento que Jagger escreveu depois que Guy se juntou aos Stones em Nova York em 2006, durante as filmagens de Shine a Light (“Foi muito divertido e mal posso esperar para ver o filme”); fotos de Guy tocando no palco com ClaptonJohn MayerSusan Tedeschi e outros. Uma escultura de uma mulher nua está presa à parede de um banheiro próximo.

Uma pintura de Stevie Ray Vaughan ocupa boa parte de uma das paredes. Em agosto de 1990, GuyVaughanClapton e outros tocaram juntos no Alpine Valley, em Wisconsin, e depois começaram a deixar o local. Guy conta que se sentou em um helicóptero que era destinado a Vaughan, que pegaria um voo mais tarde. “Quando o meu helicóptero saiu”, diz Guy, lembrando a névoa densa daquela noite, “eu falei: ‘Graças a Deus que saímos de lá’, porque StevieEric e todos eles queriam que eu fosse cozinhar para eles no dia seguinte.” Na manhã seguinte, Guy estava saindo de casa para comprar ingredientes para gumbo quando sua esposa disse que havia uma ligação da equipe de Vaughan: o guitarrista havia morrido quando seu helicóptero caiu numa pista de esqui. “Cara, eu não consegui nem…”, diz Guy, em tom sombrio. “Eu só sentei de novo. Não consegui nem me mover”.

Ironicamente, aquele período marcaria também o início da ressurreição de Guy. Com a música raiz americana voltando à moda no fim dos anos 1980 — graças em parte a Vaughan e também a artistas como Robert Cray e Los Lobos — Guy finalmente conseguiu um contrato com uma grande gravadora, desta vez com o selo britânico Silvertone. Seu primeiro álbum por lá, Damn Right, I’ve Got the Blues (1991), com participações de BeckClapton e Mark Knopfler, se tornou o grande avanço tardio do então cinquentão, vendendo meio milhão de cópias e rendendo seu primeiro Grammy (na categoria Blues Contemporâneo). Sua filha Shawnna, que só percebeu que o pai era um “super-herói” quando o viu em show e observou as reações ao seu estilo de palco frenético, notou a mudança de status. “Saímos de uma garagem para um carro só para uma garagem de três carros do tamanho da casa”, ela lembra. “A gente tinha um Toyota e uma van. Aí, num piscar de olhos, tínhamos uma Ferrari, um Rolls-Royce e um Land Cruiser. Eu fiquei: ‘Meu Deus, papai, você conseguiu’”.

Nessa altura, outra geração de músicos de blues estava descobrindo Guy — e seus encantos marotos — por conta própria. Quando conheceu Guy nos anos 1990, Tedeschi ficou impressionada com sua musicalidade: “O timbre de guitarra dele era absurdo”, ela diz. “Ele podia tocar qualquer coisa. Era maravilhoso de assistir”. Mas ela também encontrou o lado sedutor do alto e atlético músico de cabelos cacheados. “Ele era muito fofo e chegou a ser bem flertador comigo uma vez”, ela diz. “Anos depois, ele disse: ‘Eu sabia que devia ter te chamado para sair.’ Então respondi: ‘É, você devia, teria tido chance naquela época!’” A reputação de Guy como mulherengo vinha de ainda antes: nos anos 1960, Marshall Chess pediu a Guy uma daquelas místicas misturas mojo que supostamente atraíam mulheres, e Chess lembra que Guy lhe deu uma “pequena bolsa rosa, costurada à mão, cheia de coisas estranhas como cerdas de porco”.

Depois do Checkerboard LoungeGuy abriu o Buddy Guy’s Legends, que mudou de sua primeira localização para a atual em 2010. Como janeiro costuma ser um mês lento para negócios no clube, Guy começou a tocar residências no início de cada ano. Seu novo status ficava claro nos fãs acampando do lado de fora — às vezes em temperaturas abaixo de zero — para conseguir um lugar e ver o ídolo. A calçada em frente ao Legends se enchia de churrasqueiras e frituras de peixe. “Havia dois caras do Tennessee que eram verdadeiros moonshiners e faziam uma bebida de 180 graus”, lembra Mike Illingworth, o chamado superfã de Guy e assistente não oficial. Mas as noites frias eram toleráveis, para ele. “Há muitos bons músicos surgindo, mas não no nível de MuddyWolf e Buddy”, ele diz. “Gary Clark Jr. é ótimo, e há uns quatro ou cinco assim. Mas há um enorme vazio depois de Buddy”.

Guy pode não ter ficado realizado criativa ou artisticamente durante seus anos na Chess Records, mas quando começou a receber reconhecimento, já tinha aprendido lições vitais com a experiência — especialmente sobre como músicos de blues da época eram frequentemente enganados ou mal pagos. “Eu sabia o que estava acontecendo”, ele diz, de forma grave. “Eu calava a boca e via eles se ferrando, com todo respeito… Sempre andei com homens 20 ou 30 anos mais velhos porque achava que podia aprender algo com eles. Eu não podia aprender nada com alguém da minha idade porque eu já sabia o que eles sabiam”.

Quando Coogler conversava com Guy sobre escalá-lo como a versão mais velha de Sammie em Pecadores — uma homenagem a um tio do diretor, grande fã de Guy — ele lembra que Guy contava histórias sobre visitar um músico de blues mais velho, com resultados reveladores. “Ele falou sobre ir à casa de um músico que, para ele, era super bem-sucedido, e sentar no sofá, e seu traseiro afundar até a mola”, diz Coogler. “Ele percebeu naquele momento doloroso a injustiça daquilo, porque aquele músico ainda vivia na pobreza”. Guy trabalhou duro para evitar esse destino. É dono de sua própria editora musical e, em 2005, registrou seu próprio nome como marca.

As experiências de vida de Guy também permeiam seus discos. Para escrever músicas para ele, Hambridge conversava com Guy sobre sua vida. Uma das faixas resultantes, “Show Me the Money”, do álbum Skin Deep (2008), tinha raízes na história de exploração do músico. “Buddy me contou que, antigamente, às vezes [os donos de clubes] não pagavam”, diz Hambridge, que lembra Guy dizendo que subia ao palco muitas noites pensando que deveria tocar tão bem que, depois do show, os donos do clube diriam: “Eu não ia pagar, mas droga, aqui está o seu dinheiro”.

De fato, conversar com Guy é um passeio guiado pela história do blues. Uma pergunta sobre Willie Dixon, o baixista, compositor e produtor que reinou na cena de Chicago, faz surgir uma carranca. “Willie Dixon recebeu crédito por muita coisa que ele não fez, cara”, ele diz. “A Chess tirava dele, e ele tirava dos músicos”.

Mas a maioria das histórias de Guy vem acompanhada do sorriso resignado de quem sabe que os dias de ser subestimado e mal pago ficaram para trás. Ele faz uma imitação impecável de Hooker, gagueira incluída, e adora relembrar a vez em que Hooker arrumou briga com, pasme, um anão, por causa de algumas mulheres. Ou quando Guy foi recrutado pelo Departamento de Estado para tocar em shows na África Oriental, incluindo um em Uganda, sob o regime do futuro ditador Idi AminGuy diz que não tinha noção, à época, de quão assassino Amin podia ser. “Eu não sabia que ele estava cortando os dedos das pessoas e sugando o sangue”, lembra Guy, rindo. “Eu é que devia ter ficado com medo de tocar a nota errada!”

De quem ele sente mais falta? Guy faz uma pausa. “Bem, eu odeio escolher um só”, ele diz. “Quando cheguei a Chicago, B. B. King estava tocando as cordas da guitarra como ninguém jamais fez. Mas não posso separar quem eu diria. MuddyHowlin’ WolfLittle WalterT-Bone WalkerLightnin’ Hopkins. Toda essa gente aí. Se eu tivesse de decidir, diria todos eles.”

O fim da estrada?

À medida que a manhã avança lentamente, Guy está chapado. Na verdade, ele está imitando estar chapado, lembrando os dias em que dividia shows com o Grateful Dead e bandas semelhantes, além das fãs que lotavam os shows desses grupos. “Todo mundo ficava assim”, ele diz, fechando os olhos e inclinando a cabeça para trás como se estivesse completamente viajando. “Eu olhando todas aquelas mulheres bonitas. Eu disse [aos músicos]: ‘Cara, vocês tão se divertindo? Já vale a pena só de olhar pra isso.’ Não fiquei com todas. Nem queria todas. Mas eu dizia: ‘Queria estar vendo isso com a mente limpa, em vez de chapado e de olho fechado.’”

A sobrevivência de Guy pode ser atribuída à sua esperteza nos negócios, mas também ao seu estilo de vida. Ele diz que recorria a “um pouquinho de uísque” porque era tímido e o álcool ajudava a acalmar os nervos antes de subir ao palco. Ele ainda toma um conhaque de vez em quando, como fez no Legends. Mas acredita em moderação. Seja no estúdio ou em outras situações de trabalho, Guy frequentemente evita comer por completo. “Minha longevidade é que eu não exagero em nada”, ele diz. “Eu sei parar de comer quando estou cheio. Se você come demais, algo vai te acontecer. Fui criado assim: quando você tem o suficiente, você tem o suficiente. Espere até amanhã. Você viu que tomei uns goles ontem à noite. Mas nunca fui parado por dirigir bêbado, nunca atropelei ninguém, porque sei quando parar.”

Como Coogler viu pessoalmente, Guy raramente para. Depois de um longo dia de produção — e nenhuma refeição — no set de Pecadores, chegou a hora de filmar a apresentação ao vivo vista no final do filme, com Guy destruindo tudo ao lado de Ingram e Hambridge. Apesar da hora avançada, Guy parecia recarregado. “Quando terminamos, ele estava só esquentando”, diz Coogler. “Ele não queria parar de tocar.”

Quando Guy vai realmente deixar a estrada permanece uma questão em aberto. A suposta turnê de despedida em 2024 foi estendida para o ano passado e pode continuar neste ano.

Sua família aceita o fato de que ele se recusa a desacelerar. “A gente diz: ‘Pai, você não quer sentar e aproveitar os frutos do seu trabalho?’”, conta Shawnna. “E ele diz: ‘As contas vão parar?’ A gente responde: ‘OK, ponto tomado.’ Meu pai é um homem do interior. Ele vem do Sul. Ele é um trabalhador duro, e esses valores estão enraizados nele profundamente. Além disso, quando você chega nessa idade, tem que continuar se movendo. Quando você para, tudo desliga, e não queremos que isso aconteça. Preferimos muito mais ver ele de pé, sorrindo, rindo e amando o que faz.”

Ainda assim, Guy e seus colegas sabem que o relógio está correndo. “É melhor ver ele agora”, diz Illingworth, que já assistiu a mais de mil shows de Guy. “É como ver o último jogo do Pelé. É agora ou nunca.” Como demonstrou no LegendsGuy consegue se virar sozinho, devagar, mas determinado.

Mas os sinais de alerta estão por toda parte. Dois anos atrás, ele precisou remarcar uma série de shows por causa de um problema médico, e nos aeroportos a família passou a garantir que ele seja transportado de cadeira de rodas. “Ele não gostou no começo”, diz Greg Guy, também guitarrista de blues. “Ele me disse: ‘O que você está tentando dizer? Que eu sou velho?’” Guy admite a contragosto que tem alguns incômodos a mais hoje em dia. “Estou dolorido hoje, botei mais uns adesivos [para dor muscular], e amanhã talvez melhore”, ele diz em casa após a noite no Legends.

Há ainda uma questão mais urgente: quem vai manter o blues vivo quando ele não estiver mais aqui. Refletindo sobre o impacto de Sinners, que é mergulhado no blues do Delta do Mississippi dos anos 1930, Guy diz: “Acho que ajuda um pouco o blues, porque tem muito blues ali e [as pessoas têm] tratado o blues como um enteado, especialmente se você é negro. Meus netos conhecem, mas e os seus netos? O que mais me preocupa é que os jovens não ouvem mais porque ninguém toca mais.”

Ingram diz que nunca teve conversas diretas com Guy como aquelas que Buddy teve com seus predecessores, mas sabe que Guy o vê como um dos sucessores. “Ele definitivamente me mencionou como um dos que vão levar esse gênero adiante, e eu agradeci”, afirma. Tedeschi diz que Guy já se sentou com ela e o marido, o guitarrista Derek Trucks, para falar sobre como eles devem manter a música viva depois que ele se for. “É pesado”, ela diz. “São sapatos muito grandes para preencher.”

Quando chega o começo da tarde, Guy anuncia que vai se retirar — mas, neste caso, apenas para seu cochilo regular. Sua única preocupação é ser acordado por chamadas automáticas e golpes por telefone. Entre as lições que passou à família, Guy tem orgulho especial de transmitir uma: sobre essas ligações fraudulentas e como elas exploram as pessoas por dinheiro. “Eu disse ao meu filho: ‘Eles vão tentar pegar o número do seu cartão?’” Ele diz. “Eu disse a ele o que responder: ‘Você quer meu cartão? É F-U-C-K-Y-O-U.’” Ele ri alto e gostoso. “Quando ligam assim, é porque querem alguma coisa. Ninguém vai te dar nada, cara.”

Fonte:Buddy Guy

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