Apesar de o foco principal ser a literatura e a cultura do livro, a Feira Literária de Bonito (Flib) – como tem sido praxe em eventos do segmento – costuma apresentar em sua programação uma agenda com várias outras expressões artísticas.
E assim foi durante a sua oitava edição, que de quarta-feira a sábado ocupou a Praça Liberdade com teatro, shows, contação de histórias, oficinas e atividades lúdicas, fazendo a cabeça de crianças e adultos.
O tema deste ano foi “Literatura: Fronteiras e Travessias”, enquanto os autores homenageados foram Hélio Serejo (1912-2007), Graciliano Ramos (1892-1953) e Aglay Trindade (1934-1998).
Um público estimado em pelo menos 7 mil pessoas esteve em vários ambientes da praça, a fim de, por exemplo, curtir um som – de nomes como Jerry Espíndola, Maria Alice e VozMecê, os quais fizeram shows potentes e impecáveis – ou, sim, matutar sobre as ideias lançadas pelos autores presentes.
As rodas de conversas deram pano para a manga, e a a cada tema explorado pelos palestrantes a imaginação da plateia parecia faiscar, rendendo debates de muita substância ao fim das falas.
“Naquilo que leio da literatura brasileira contemporânea, começo a pensar em que elemento eu posso pegar para estabelecer uma linha e poder convidar autores que correspondam, tangenciem de alguma forma, e é isso que estou percebendo aqui. Tenho esse pensamento da fronteira e sei o que é que é viver em um estado fronteiriço”, disse Maria Adélia Menegazzo.
A escritora e professora é quem responde pela coordenação geral do evento e estava animada após uma roda de conversa, na manhã de quinta-feira, na qual palestrou ao lado do sociólogo Álvaro Banducci Júnior.
“Gostei demais. Acho que, no fim, as pessoas, por elas mesmas, conseguem entrar nos temas da Flib”, afirmou a responsável pela feira. “O que nos impede de compreender a diferença entre valorização, atualização e apropriação cultural?”, pergunta o repórter, buscando eco para o que ouviu durante a roda.
“Uma certa preguiça. É uma discussão que precisa ser feita, só que há uma certa apatia. Parece que isso não amplia nossos horizontes, não favorece nem os indígenas nem os não indígenas, não gera uma emancipação efetiva”, responde a escritora, prosseguindo que “aquela ideia de nação que você tem lá no Império, na vinda de Dom João, depois ela vai se efetivar também no grupo modernista paulista”.
“Ainda que com todas as suas diferenças e restrições, você tem ali os movimentos Verde e Amarelo [1926], Antropofágico [1928] e Pau-Brasil [1924]. São vários movimentos que têm esse desejo de criar uma identidade nacional, mas agora não mais calcada nos valores europeus”, esclarece.
“Quem resume tudo é ‘Manifesto Antropófago’ (1928), de Oswald de Andrade, em que ele fala ‘tupi or not tupi’. É um olhar voltado para a diversidade cultural brasileira”, explica Maria Adélia.
ÍNDIO
“Fui percebendo que tudo que a sociedade não indígena sabia sobre povos não indígenas vinha de coisas escritas, documentos, livros. E grande parte do que se tinha destituía de valor as nossas culturas. Os conceitos sobre povos indígenas vêm de livros escritos no século 16 que distorciam de uma maneira extremamente profunda o nosso saber, o nosso conhecimento. A ideia, por exemplo, de índio. Não que eu considere essa palavra pejorativa, mas ela não explica toda essa diversidade, essa pluralidade de culturas, de pessoas”, diz Kaká Werá.
O autor paulista afirma que o termo é muito reducionista.
“A ideia de que nós não somos gente está implícita na palavra índio. Com essa diversidade toda de povos, até 1988 nós não éramos considerados gente perante a Constituição. Se dizia que os povos indígenas eram incapazes de exercer cidadania. Para você ter ideia de o quanto isso é grave, não se trata de um preconceito cultural, mas de um preconceito institucional”, alerta.
“Um dos primeiros livros sobre a história do Brasil e que foi escrito por um cara chamado [Pero de Magalhães] Gandavo detona os povos indígenas, e ali nasce a ideia de que não somos gente. Só que tem um pequeno detalhe: esse cara esteve no Brasil, com uma passagem por Salvador [BA] uma vez, e ele escreveu esse livro de Goa, lá na Índia”, pontua Kaká.
“A escrita é a nossa maior arma para a gente poder vencer”, arrematou o professor terena Aronaldo Júnior, de Miranda.
“MARAVILHOSO”
“Pode falar palavrão em livro? Pode matar polícia em livro? Então livro é maravilhoso”, provocou Geovane Martins, que preenche a sua literatura com a vivência pessoal em Bangu, na Rocinha e em outras comunidades da periferia do Rio de Janeiro.
“O livro, assim como o cinema, é uma ferramenta ambígua. Pode servir para oprimir também. Destituir povos de humanidade, de direitos. Só que é uma ferramenta tão poderosa que o mesmo poder de opressão pode ser o poder de emancipação”, disse o autor carioca.
“A Palma de Ouro do [filme de 1959] ‘Orfeu da Conceição’ já traz o Vinicius [de Moraes]. E em 1962 ganhamos com ‘O Pagador de Promessas’, e aí é o brasileiro, a condução brasileira. A literatura para a gente foi o par forte, foi a casa, o braço estendido da afirmação do cinema brasileiro. Quando a gente estava em um mar revolto, em uma situação difícil dos anos de chumbo, eram os livros, [eram] esses autores, que nos davam esse aporte para poder navegar e não perder a esperança nem a passada”, resgatou Antônio Pitanga, ator em mais de 90 produções.
SONHO
“Eu não tinha internet em casa, mas eu tinha um sonho, o sonho de ser escritora. Procurei vários projetos para me auxiliar nesse conhecimento em prol das crianças do assentamento e de outras áreas, para poder mostrar que elas também poderiam angariar conhecimento por meio dos livros. Não é fácil você tentar abrir, expandir a mente de um adulto, um jovem, uma criança, e falar para eles que eles também têm essa necessidade de conhecimento”, relatou a agricultora Gislene Dias, que conseguiu viabilizar o seu livro com a venda de abacaxis.
“Racismo não é um tema, racismo é um subproduto do ódio. E como subproduto do ódio, ele tem que estar na lata de lixo. O papel da escola é escolarizar o mundo, a pedagogização da vida. O papel da literatura é ensinar os alunos a fazerem perguntas. A literatura não cria corpos dóceis, cria corpos que vão atrás de seus desejos”, instigou Jeferson Tenório, autor de “O Avesso da Pele”, livro censurado em vários estados do País, inclusive em Mato Grosso do Sul.
A cearense Socorro Acioli disse que a feira foi uma das mais interessantes de que participou nos últimos tempos.
“Principalmente porque vejo as pessoas vindo com tanta vontade de conhecer o autor, comprar o livro, conversar e fazer perguntas. Além disso, por estar acontecendo em uma praça, sinto o livro muito mais vivo. Estou muito feliz e já me ofereci para voltar”, destacou.
Fonte:CE