No Mantenedor de Fauna Silvestre do Instituto Libio, em Porto Feliz (SP), há um simpático macho de anta (Tapirus terretris) chamado Orelha. Passou mais de 17 anos em um pequeno recinto, de chão concretado, sem lago ou gramado. Quando chegou até nós estava infestado de parasitas e as condições gerais de saúde não eram as melhores. De forma tímida foi se adaptando à nova casa. Na primeira semana, não arriscou entrar no lago. Na segunda, algumas pegadas começaram a surgir na margem do lago. Hoje, com 22 anos, tem os cuidados e espaço adequado para proporcionar o mínimo de condições. A liberdade de retorno à natureza infelizmente não é mais possível.
Jorge Salomão, responsável técnico e veterinário do Instituto Libio, explica que “Orelha é um animal nascido em cativeiro, com contato próximo a humanos desde sempre. Essa proximidade gera uma alteração comportamental que inviabiliza a soltura. Além disso, após todo esse tempo de cativeiro, ele perde comportamentos básicos importantes para o seu dia a dia, como o forrageamento e tantos outros, tendo assim que permanecer em cativeiro sob cuidados humanos.” Embora hoje Orelha esteja bem, foi privado da vida livre na natureza.
Entretanto, existem projetos incríveis que possibilitam o retorno das antas ao seu hábitat. Importante ressaltar que a anta é uma espécie classificada na como “vulnerável” (VU) na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção. Além disso, está contemplada no Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação de Ungulados, que possui o objetivo de promover a viabilidade populacional das espécies de ungulados ameaçados.
Para conhecer melhor esse tipo de manejo para conservação de antas, conversei com o biólogo, professor e pesquisador Maron Galiez, que está envolvido no PAN Ungulados. Ele é doutor em Ecologia, professor no Instituto Federal do Rio de Janeiro, coordenador do projeto de Reintrodução de Antas na Mata Atlântica do Rio de Janeiro e diretor vice-presidente do Refauna (projeto de restauração dos ecossistemas naturais a partir da refaunação, ou seja, do restabelecimento de diversas espécies de animais que estavam extintas localmente).
Tatiane Rech – Por que projetos de translocação, transferência de animais de uma área para outra, são importantes?
Maron Galiez – O crescimento de atividades antrópicas voltadas para o setor socioeconômico tem sido o principal responsável pela modificação dos hábitats naturais, rápido declínio de populações e perda de espécies. A perda de espécies animais, denominada defaunação, representa não somente a redução da riqueza de espécies em um ambiente, mas também está atrelada à perda das interações ecológicas essenciais para a manutenção do ecossistema. Em ecossistemas defaunados, há aumento dos níveis tróficos intermediários devido à extinção dos predadores de topo, diminuição da polinização devido à perda de espécies e alteração da comunidade vegetal pela perda dos animais dispersores de sementes.
Nessas florestas vazias, a falta de grande dispersores afeta principalmente espécies vegetais que possuem grandes sementes, as quais se acumulam em pilhas próximas às plantas-mãe. Em florestas neotropicais, os efeitos da defaunação são ainda mais marcantes, uma vez que aproximadamente 90% das espécies arbóreas possuem dispersão pelos animais, com sementes que apresentam adaptações para que seus frutos possam ser consumidos por vertebrados.
Um importante instrumento para reverter o atual quadro de extinções locais é a reintrodução, processo pelo qual é possível restabelecer populações viáveis a partir da translocação de indivíduos de vida livre ou de cativeiro. É um trabalho com o objetivo de não só restabelecer as populações de grandes vertebrados, mas também de restaurar as interações ecológicas e serviços ecossistêmicos. Assim, um dos maiores desafios ambientais do século 21 consiste em restaurar ecossistemas com espécies animais chaves, principalmente mamíferos de médio e grande porte.
Tatiane Rech – Como iniciou o projeto de reintrodução com as antas?
Maron Galiez – O Projeto de Reintrodução de Antas na Mata Atlântica do Rio de Janeiro começou seu planejamento e busca por financiamento em 2012, no escopo do Refauna. Na época, eu era pós-doc do professor Fernando Fernandez (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que havia iniciado os primeiros projetos de reintrodução de fauna no Parque Nacional da Tijuca e liderava um conjunto de pesquisadores que nos anos seguintes montaria o Refauna (atualmente uma ONG).
Ao analisarmos o cenário mais amplo do Estado, verificamos que mesmo os maiores remanescentes florestais fluminenses estavam “vazios” da megafauna. O estado do Rio de Janeiro, por ter sido capital do império, sofreu grande ocupação dos ambientes naturais, e, por isso, apresenta quase metade das espécies de mamíferos ameaçadas de extinção e algumas já extintas, como a anta, a onça-pintada e a ariranha. Para começar a remontar esse quebra-cabeça das florestas e suas espécies, avaliamos que a melhor estratégia seria a reintrodução da anta na área conhecida como Mosaico Central Fluminense, que abrange 29 unidades de conservação.
Após cinco anos (eu já era professor efetivo do Instituto Federal do Rio de Janeiro, tendo antes passado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Zona Oeste), com patrocínio da Faperj e da Fundação O Boticário, conseguimos realizar o transporte do primeiro grupo de antas para a Reserva Ecológica de Guapiaçu (Regua), em Cachoeiras de Macacu, borda do Parque Estadual dos Três Picos (PETP), a maior área do Mosaico. Essa demora aconteceu porque esse é o primeiro projeto de reintrodução de antas a acontecer no Brasil (e no mundo – em paralelo estava o Projeto de Iberá, mas na época não tínhamos contato). Por isso, tivemos diversas reuniões com a Patrícia Medici (Incab, TSG/IUCN), com veterinários da Fiocruz (Ana Jansen e André Roque) e do Centro de Recuperação de Animais Silvestre (Cras) da Universidade Estácio de Sá (Jéferson Pires), com técnicos do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) para definir os exames sanitários das antas, a forma de transporte e as melhores estratégias de aclimatação. Durante esse período, fui em busca de montar uma equipe que tivesse além de ecólogos, mas também pessoas ligadas à educação ambiental e coexistência humano-fauna.
Quando tudo finalmente começou, o projeto era liderado por mim, contando com a participação do Fernandez, de mais dois pós-doutorandos (Carlos Henrique Salvador – ecólogo – e Joana Macedo – coexistência) e cinco estagiários. Imagino que seja o projeto com a maior proporção pós-doc/estagiário. Atualmente, contamos com a parceria e apoio da própria Regua, do Instituto de Ação Socioambiental (ASA), do Projeto Guapiaçu/Petrobras, do INEA, do PETP e do IFRJ, além dos parceiros do Refauna. Também conseguimos estabelecer parceria com nove instituições de conservação ex-situ (CBMM, Klabin, RioZoo/BioParque do Rio, Sorocaba, Guarulhos, Fazenda Trijunção, Ilha Solteira, São Carlos, São José do Rio Preto), que forneceram no total 22 antas para serem translocadas.
Apesar de parecer só louros, passamos por apertos financeiros. Em 2020, precisamos realizar uma vaquinha virtual para conseguir manter o monitoramento das antas. A partir da parceria com o Projeto Guapiaçu, com financiamento da Petrobras, conseguimos retomar as solturas.
Tatiane Rech – Por que essa área foi escolhida e por que essa espécie? Qual a origem desses animais?
Maron Galiez – A área escolhida para a soltura das antas foi o Mosaico Central Fluminense, que é o maior remanescente de Mata Atlântica do estado do Rio de Janeiro. Nessa região, no Vale das Antas, atualmente sob proteção do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, foi obtido o último registro de anta em território fluminense. Entre as unidades de conservação que formam o Mosaico, o Parque Estadual dos Três Picos é a maior unidade de conservação e como porta de entrada para o parque (e consequentemente para o Mosaico), escolhemos a Reserva Ecológica de Guapiaçu, uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) contígua ao PETP. Essa reserva particular possui um histórico de conservação e reflorestamento da bacia do rio Guapiaçu e conta com um time de guardas-parque e educadores ambientais, o que permitiu uma maior inserção do projeto das antas na comunidade local.
A anta é um importante dispersor de sementes, principalmente de palmeiras com sementes grandes. Ao se alimentarem de frutas e se moverem pela paisagem, elas ingerem os frutos das plantas, que ao passarem pelo trato digestório, as sementes são depositadas em diferentes locais junto com as fezes. Isso ajuda na regeneração da floresta, contribuindo para a diversidade de plantas da área. Devido ao grande volume de matéria vegetal que come, sejam os frutos ou as folhas e ramos, as antas ajudam a controlar o crescimento excessivo da vegetação em determinadas áreas, minimizando a competição e prevenindo a dominância de uma espécie sobre as outras.
E também por ser uma espécie de grande porte e defecar em grande quantidade, a anta é uma espécie de grande importância para os besouros escarabeíneos, que utilizam suas fezes como recurso e local de nidificação. Além disso, por ser o maior mamífero do Brasil, é um grande símbolo de nossa diversidade e um possível foco para o ecoturismo de observação de fauna no estado do Rio de Janeiro.
As antas reintroduzidas vieram de nove diferentes instituições de conservação ex-situ, seja zoológico ou criadouro (Criadouro Conservacionista da CBMM, Criadouro Conservacionista da Klabin, RioZoo/BioParque do Rio, Zoo de Sorocaba, Zoo de Guarulhos, Criadouro Conservacionista da Fazenda Trijunção, Zoo de Ilha Solteira, Zoo de São Carlos, Zoo de São José do Rio Preto). Geralmente, são animais que nasceram em cativeiro, de pais e avós de cativeiro. Assim, são animais que apresentam um inprint muito grande. É comum antas de cativeiro serem muito dóceis e buscarem contato com os tratadores. Isso é um desafio pós-soltura, uma vez que elas buscam alimentação próximo a casas, mas, por outro lado, facilita o manejo durante a aclimatação.
Tatiane Rech – Como são realizadas as solturas?
Maron Galiez – Ao longo do projeto, já foram soltas 22 antas (11 machos e 11 fêmeas). Quando os animais chegam na Regua, os colocamos em um cercado de aclimatação com 0,88 hectares, quase o tamanho de um campo de futebol. Utilizamos a técnica de soltura branda/demorada, ou seja, deixamos as antas em aclimatação de um a três meses para elas se acostumarem com a dieta, a temperatura e o regime de chuvas da região. Depois, nós as soltamos. Durante esse período, aproveitamos para realizar a biometria e instalar os brincos de marcação e o colar de telemetria.
Como esses animais vieram de cativeiro, após a soltura, temos que ter atenção e diálogo com a comunidade local. Se as pessoas deixam muito lixo orgânico ou restos de plantação disponível, as antas se aproximam e tendem a ficar próximas às pessoas. O que é muito ruim. Elas deixam de realizar seu papel na natureza e podem levar a conflitos.
Nosso objetivo é manter um monitoramento por telemetria ao longo do primeiro ano pós-soltura e por armadilha fotográfica de longa duração. Isso permite que estudemos o padrão de uso do espaço dos animais, o padrão de atividade e registrar os óbitos e nascimentos. Infelizmente, sete antas vieram a óbito. Mas seis outras nasceram.
Um fato interessante é que depois de soltas, as antas se tornam cada vez mais noturnas, como são na natureza mesmo. Isso mostra uma dependência cada vez maior de nosso manejo.
Tatiane Rech – Qual é o investimento médio, em termos de valores financeiros, equipe necessária e tempo que um projeto dessa magnitude envolve?
Maron Galiez – Por ser um animal da megafauna, tudo que envolve a anta é mega: equipe, tempo, custo, estrutura. Nosso planejamento é de atuar até garantir uma população de 50 indivíduos na área do Mosaico. Por isso, planejamos ações até 2027, completando 10 anos de atividade. As antas possuem gestação muito lenta, podendo chegar a 13 meses. Por isso, após a soltura dos animais na região, precisamos monitorá-los para ter garantia que estão se estabelecendo no local, sobrevivendo e se reproduzindo. E que seus filhotes também estão se reproduzindo.
Nossa equipe direta envolve de 10 a 15 pessoas, mas contamos com apoio da equipe do Instituto ASA, que desenvolve atividades de educação ambiental na região, e da Regua, que também atua com educação ambiental e nos fornece alojamento, alimentação e logística.
Até existem bastantes instituições com antas em cativeiro. Na base do Sisfauna, existem 18 cadastradas, com 92 indivíduos. Entretanto, existe uma variação genética entre as diferentes populações de antas de acordo com os biomas. Por isso, no projeto, definimos usar apenas antas de origem da Mata Atlântica ou Cerrado. Assim, existem poucas instituições que podem fornecer muitas antas de uma vez. Ao longo do projeto, conseguimos transportar no máximo seis antas por ano.
Outra questão é o custo do equipamento. Para monitorar as antas após a soltura, instalamos um colar de telemetria, que armazena as localizações do animal a cada hora e uma vez por semana envia os dados por e-mail. Como o equipamento é importado, o custo chega a R$ 50 mil por colar, mais R$ 100 por mês para enviar os dados. Como as antas apresentam grandes áreas de vida, nossa grade de monitoramento é constituída por 50 pontos de amostragem, cada um com uma armadilha fotográfica. Imagina o custo!
O transporte das antas é feito dentro de uma caixa específica para espécie, segundo as recomendações dos órgãos internacionais. Alguns parceiros estão a mais de 48 horas de distância. Por isso, às vezes, o transporte de um casal de antas sai por R$ 20 mil.
Além desses custos, temos os custos operacionais, como alimentação e estadia da equipe em campo, pilhas, cartões de memória, entre outros. Nossos custos rondam quase R$ um milhão por ano. Atualmente, esse custo é majoritariamente coberto pela Petrobras, a partir da parceria com o Projeto Guapiaçu, do Instituto ASA.
Tatiane Rech – Depois de quanto tempo é possível considerar que as reintroduções tiveram sucesso?
Maron Galiez – Projetos de reintrodução possuem verificações de curto, médio e longo prazos. Os de curto prazo são o estabelecimento dos animais no local, a sobrevivência e a reprodução. Já conseguimos observar os animais se reproduzindo. Foram seis nascimentos na natureza! Duas fêmeas já tiveram seu segundo filhote.
Entretanto, ao longo do projeto, sete antas vieram a óbito, além de um dos filhotes. As mortes dos animais reintroduzidos estão concentradas no primeiro mês pós-soltura, por causa de conflitos entre os animais já soltos, por não conseguirem acessar os pontos de suplementação alimentar e por ataques de morcegos Desmodus.
Assim, o projeto deve continuar a liberar mais em novas áreas relativamente afastadas das áreas que já têm antas e favorecer o nascimento de novos filhotes.
Nosso sucesso de longo prazo será quando tivermos uma população de 50 antas na paisagem.
Fonte:FaunaNews