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História de irmãos do tráfico tem b.o comprado por R$ 90 mil

"Bagual” e “Cateto” fizeram má fama figurando entre os chefes do comércio ilegal de drogas na fronteira do Brasil com o Paraguai, a ponto de trocar com tiros com policiais para resgatar droga

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O mês de junho do ano 2000 foi intenso para a polícia na pequena cidade de Amambai, encravada na extensa faixa de fronteira seca Brasil-Paraguai, território subjugado há décadas pelo poder paralelo dos traficantes de drogas e armas, e pelas consequências que as atividades ilegais trazem.

Os vilões da história que a Capivara Criminal resgata na edição deste domingo foram os irmãos “Bagual” e “Cateto”. Os dois fizeram má fama nos anos 2000, figurando entre os chefes do comércio de produtos ilegais em Mato Grosso do Sul, numa época repleta de “barões” do tráfico, já marcada pela atuação das facções, e tumultuada pela guerra sangrenta pelo domínio do lucro advindo do crime organizado.

Um dos irmãos foi executado, em 2008, depois de cumprir pena. O outro está vivo e voltou a ser preso recentemente pelo mesmo tipo de atuação criminosa. Segundo a acusação, nunca teve atividade lícita na vida, e não deixou a vida criminosa nem depois de ver o irmão morrer com uma saraivada de tiros.

Pouso forçado e tentativa de resgate

Na noite de 29 de junho do ano que fechava o século XX, um avião monomotor para cinco passageiros fez pouso forçado em uma fazenda em Iguatemi, localizada a pouco mais de 50 quilômetros de Naviraí. No Cessna de matrícula PT-OLO, estava uma carga de cocaína, de mais de 300 quilos. Uma aeronave do tipo, em preços atuais, custa pelo menos R$ 1,2 milhão.

Os donos dos fardos de pó branco de alto valor, revelou o trabalho policial, eram os dois irmãos ilustres de Amambai, “Bagual”, 31 anos, e “Cateto”, prestes a chegar aos 22 anos. Embora relativamente jovem, a dupla já tinha estrada no crime.

Os irmãos não estavam no local do pouso emergencial, mas sim dois comparsas do grupo criminoso, piloto e copiloto. Feridos, os traficantes foram levados para o hospital, sob escolta. Chamados pelo dono da fazenda Petiry, policiais civis e militares foram à propriedade rural, como era de se esperar.

Os acontecimentos seguintes, porém, são totalmente inusitados, mesmo quando envolvem infratores contumazes, sem qualquer régua moral.

Pois bem, quando a equipe de policiais civis aportou na fazenda, chefiada pelo delegado regional da Polícia Civil em Naviraí, os dois feridos sugeriram tacar fogo no avião, e disseram ter muitos dólares.

Depois, uma ligação telefônica colocou a autoridade de segurança em contato com o próprio chefe do bando. “Bagual” indagou (acredite!) se podia ir buscar os fardos de cocaína, oferecendo os “muitos dólares” como moeda de troca. Propina, melhor dizendo.

Um dos homens que carregavam a cocaína havia avisado o chefe anteriormente, depois de insistentes tentativas de contato, usando o telefone da propriedade rural, sobre o prejuízo à vista.

A equipe policial, de acordo com o relato constante dos documentos oficiais sobre o caso, topou a negociação, com o intuito de prender os criminosos. Reforços foram chamados.

Quando os bandidos chegaram à fazenda, deu-se um embate.

“O denunciado, acompanhado de capangas seus, agindo com a ousadia típica dos narcotraficantes da região, chegou ao local com a finalidade de resgatar a cocaína, utilizando-se de duas camionetas: uma MITSUBISHI L200, 4×4, azul, placas HRF 8747 e uma FORD F250, prata, placas HRP 7875, a primeira pertencente, no tempo dos fatos, ao denunciado ELIANDRO (fls. 33/37 e 84/88 do anexo III), enquanto que a segunda pertencente, naquela época, ao denunciado JOSÉ ELIAS (fls. 31 e 96 do anexo III), embora registrada em nome do denunciado ELIANDRO (fls. 53/54 do anexo III).”

Trecho de denúncia do MPF

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Peça processual descreve troca de tiros entre traficantes e policiais. (Foto: Reprodução de processo)

No tiroteio, ninguém ficou ferido, os irmãos fugiram e os pacotes de entorpecente ficaram, sendo apreendidos. Somaram 337 quilos de cocaína, originada possivelmente da Bolívia, com passagem pelo corredor paraguaio do tráfico para chegar até o mercado consumidor a partir de Mato Grosso do Sul.

Na confecção da ocorrência policial, surgiu o nome de João Morel, integrante de um clã do tráfico à época, como o dono da cocaína. Na boca do piloto preso, havia a citação de “um tal de Morel” como o dono do entorpecente.

Personagem de ficha criminal recheada, com tentáculos exatamente na Bolívia, Morel chegou a ficar preso por isso, e só depois que a Polícia Federal desenvolveu a investigação, foi constatada a mentira.

João Morel era adversário de Fernandinho Beira-Mar, de quem já tinha sido aliado um dia, no comando de ações do tráfico internacional na fronteira. Os irmãos “Bagual e Cateto”, na época eram ligados ao criminoso famoso do Rio de Janeiro, segundo se apontava em peças investigatórias.

A inserção do nome dele como dono da carga foi uma pegadinha nada amistosa, praticada pelos policiais de acordo com o réu ao qual a acusação foi atribuída.

“Reinquirido na data de 14/12/2000, afirmou não ser verdadeira a inserção do nome MOREL no seu interrogatório, mas que tal nome foi deliberadamente colocado pelos policiais civis que o prenderam em flagrante”, retrata trecho de depoimento de um dos homens presos quando o avião foi achado.
Trecho de peça processual

Morel inocente
Trecho de peça processual que exclui culpa atribuída a João Morel. (Foto: reprodução de processo)

João Morel continuou no polo passivo dos autos. O nome dele só foi excluído porque, durante o curso da ação, ele foi assassinado na Estabelecimento Penal de Segurança Máxima de Campo Grande, em janeiro de 2001, seis meses depois da apreensão, portanto.

R$ 90 mil por um b.o

Pensa que a crônica do abuso da bandidagem acabou? Nada. Só piora, porque os ingredientes de corrupção policial não param.

No dia seguinte à tentativa de resgate do entorpecente, consta da sentença sobre esse episódio, foi confeccionado na delegacia de Polícia Civil de Amambai um boletim de ocorrência como se uma das duas camionetes usadas na tentativa de resgate tivesse sido furtada, com data retroativa. Foi inventado um crime, pela própria polícia, para beneficiar traficantes.

O custo foi de R$ 15 mil, novamente segundo registrado na decisão judicial sobre o fato. Se o valor já impressiona sem fazer a atualização monetária, quando ela é feita, equivale atualmente a R$ 90 mil, segundo o cálculo feito por ferramenta do Banco Central para correção de valores.

boletim falso
Ação penal cita boletim fraudado em delegacia de Amambai. (Foto: reprodução de processo)

 

No dia seguinte, a F250 cravada de furos, resquícios do tiroteio no dia da apreensão, foi levada para a delegacia com o auxílio de dois detentos, prosseguem as anotações oficiais do caso. O veículo foi carregado em um caminhão For branco, com placas de Santa Catarina, que estava apreendido. Na escolta, três policiais civis, um deles o titular da delegacia de Amambai. Isso mesmo.

Passados mais três dias, a camionete foi devolvida a Bagual, como se tivesse sido recuperada após um furto.

Todo esse trâmite irregular foi contado por testemunhas do processo derivado da apreensão da cocaína, que correu na Justiça Federal em Dourados.

Tempos depois, o utilitário foi levado a uma oficina local para conserto nos locais atingidos por disparos de arma de fogo. No papel, o dono era “Cateto”, que chegou a acionar o seguro do automóvel, mesmo tendo sido usado numa situação de crime.

O mesmo “Cateto” chegou a ser pego dirigindo uma L200, embriagado, e fazendo manobras perigosas, em Amambai. No veículo, também havia marca de tiro. Seria a outra camionete usada na tentativa de resgate da cocaína perdida depois do pouso na fazenda Petiry.

Há outro ingrediente no mínimo curioso na ação penal. O tio e padrinho de “Bagual” testemunhou contra o parente, falando de seus negócios escusos e dizendo já ter sido ameaçado de morte por ele.

Pelas coordenadas do GPS da aeronave monomotor apreendida, o trajeto feito passava pela fazenda Bom Fim, em Laguna Carapã, de propriedade de uma tia dos irmãos Fernandes do Amaral.

Sentenciados

Pela posse da droga, “Bagual” e “Cateto” foram presos no começo de 2021. Ao final do processo, receberam condenação a 10 anos de reclusão, pena ampliada para 13 anos quando houve recurso do processo no TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), sediado em São Paulo. Tentaram recorrer nos tribunais superiores, sem êxito.

Quando à corrupção policial, a sentença cita que houve investigação da Corregedoria da Polícia Civil, mas não foi possível obter o resultado.

No despacho, é anotada a estranheza por não ter constado no flagrante dos primeiros presos pela posse da droga as informações sobre a tentativa de resgate, como você vai ver no trecho ilustrado abaixo.

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Sentença cita que auto de prisão de traficantes ignorou tentativa de resgate. (Foto: reprodução de processo)

Fato é que delegado citado, cujo nome será preservado, hoje está aposentado, recebendo normalmente da Polícia Civil, assim como o policial que chefiava a equipe de Naviraí na época.

Ambos foram procurados, mas não responderam aos contatos.

Quem são os irmãos

“Bagual”, José Elias Fernandes do Amaral no registro de nascimento, foi executado quando saia de uma festa no Clube do Laço de Amambai, em dezembro 2008. O crime nunca foi esclarecido.

Os adversários eram muitos, inclusive um dos apontados como o delator da localização de José Elias quando foi capturado pela Polícia Federal em fevereiro de 2001. Consta das informações correntes nesse período que foi Líder Cabral, outro nome de peso no cenário do narcotráfico na época, o responsável por dar as coordenadas da localização do inimigo, em uma fazenda.

Cabe aqui registrar que Líder sobreviveu a uma chacina, em janeiro de 2002. A casa onde vivia, em Pedro Juan Caballero, foi invadida e onze pessoas morreram, entre elas um menino de três anos, filho de Carlos Arias Cabral, nome de batismo de Líder.

Em entrevista à revista Istoé, que enviou equipe à fazenda de Cabral, sob condições de não revelar o lugar, ele falou de “Bagual” e atribuiu a ele a condição de participante do ataque mortífero, junto integrantes do bando de Beira-Mar e da facção surgida nos presídios de São Paulo, com apoio logístico de policiais, nas palavras do traficante.

“Os repórteres foram levados à fazenda onde Cabral se esconde com os olhos vendados. Em mais de duas horas de conversa exclusiva, ele quebrou seu pacto de silêncio e revelou detalhes do submundo na fronteira mais perigosa do Brasil. Dez quilos mais magro, lembrou o ataque a sua fortaleza e a morte do filho. “Eu tentei salvá-lo, mas não houve tempo. Vou carregar essa culpa”, afirmou. Os repórteres foram a fortaleza atacada. Marcas do tiroteio estão por todo lado. Nos muros e paredes manchados de sangue, buracos de fuzil. No quintal e na varanda, crateras abertas pelas granadas”, descreve a reportagem, sob o título “Guerra na Fronteira”.

Revista Istoé de 6 de fevereiro de 2002

Líder Cabral era um cidadão fugitivo dos inimigos e da justiça. Ficou nessa condição até 2010, quando foi capturado pela Polícia Federal no Paraná, na cidade de Planalto.

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“Cateto” na entrada de uma de suas propriedades em Bonito. (Foto: reprodução de processo)

De volta à prisão e ao noticiário

Eliandro Fernandes do Amaral, o “Cateto”, aos 45 anos, voltou a ser notícia no mês passado, quando foi preso na operação “Paraíso Marcado 2”, feita em Bonito. Para a cidade turística, ele transferiu as bases de seu negócio ilegal, anos depois da morte do parceiro fraterno de vida à margem da lei, como aponta denúncia do Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado).

Detalhes dessa acusação foram tema da edição da semana passada da Capivara Criminal.

Para o Gaeco, Eliandro, além de herdar o capital do irmão, usou familiares e amigos próximos para reorganizar a firma clandestina, saindo da região vizinha ao Paraguai para Bonito, o principal destino turístico de Mato Grosso do Sul.

Na cidade, assim como duas décadas atrás, também há denúncias de proteção policial. Na primeira fase da operação, sete policiais militares foram presos. As duas ações, uma para a quadrilha de “Cateto”, e outra para os agentes públicos de segurança, estão em fase de instrução na Justiça estadual.

A defesa de Eliandro Fernandes do Amaral, representada pelo advogado José Roberto da Rosa, afirma não haver provas de ilícitos da parte dele. Oficialmente, sua renda atual vem da criação de gado.

“Cateto” está preso em Campo Grande, no complexo prisional da Gameleira. Dois pedidos para responder ao processo em liberdade estão sob análise do Judiciário.

 

Fonte:PrimeiraPagina

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