Documentarista mostra o Pantanal em chamas para o mundo

O homem-onça é uma criatura que devora outros homens, segundo um mito indígena comum aos povos guarani e kaiowá, que vem sendo atualizado a partir do levantamento de alguns pesquisadores como homens-fera da vida real.
Eles se aproximam das aldeias e das comunidades pilotando tratores e portando armas de fogo para assustar, incendiar e, muitas vezes, investir diretamente contra os índios.
O documentarista de natureza Lawrence Wahba criou a sua leitura sobre o mito a partir da dura e flamejante realidade que encontrou no Pantanal quando chegou para sua 50ª expedição à região.
MAIS ONÇA-PINTADA
O resultado pode ser conferido a partir de amanhã, Dia do Pantanal, com o lançamento de “Jaguaretê-Avá: Pantanal em Chamas”, a mais recente produção dirigida pelo experiente desbravador, que estreia no Globoplay.
Nas palavras do diretor, que já conquistou prêmios como o Emmy com suas produções, o documentário é, ao mesmo tempo, uma visão de dentro da tragédia e da forte corrente que se formou para tentar salvar o Pantanal e contar a alarmante história.
Sempre presente também em frente da câmera nas produções que dirige, Wahba divide a tela com a vítima do reino animal. No filme, a onça-pintada aparece como uma metáfora da resistência do rico manancial pantaneiro ante a destruição.
Alguns animais da espécie afetados pelos incêndios ganham destaque com o relato de suas histórias, a exemplo de Amanaci, Ousado e Ague.
As imagens provocam simultaneamente fascínio e terror, pela contradição natural que a plástica do fogo, deixando solo, vegetação e animais em brasa, confere às imagens.
Causa estremecimento em qualquer mortal ouvir, a certa altura do documentário de 74 minutos, uma verdade avassaladora que já conhecemos: “O principal agente causador dos incêndios é o homem”.
Foram 10 semanas em quatro expedições – às regiões de Miranda, Serra do Amolar, Porto Jofre, Transpantaneira, Parque Nacional do Pantanal e Parque Estadual Encontro das Águas -, com o auxílio luxuoso da legião de especialistas, muitos deles voluntários, que renderam, no total, mais de 100 horas de material captado.
Quem deu a forma final a esse material na ilha de edição – ao longo de nove meses, “uma gestação”, brinca Wahba – foi Tatiana
Lohmann e Marco Del Fiol, dupla acostumada com o manejo de material de arquivo em suas funções individuais, tanto na montagem quanto na direção.
A trilha sonora, concebida por Fabio Cardia, levou três meses para ficar pronta, um tempo que pode ser considerado longo se comparado ao da maioria das produções, com ou sem pandemia.
Cardiaiu uma equipe de 15 profissionais para criar os 39 temas musicais do conduzido, que seguir uma plástica minimalista, talvez para compensar a triste eloquência das imagens, com o uso de instrumentos étnicos e regionais (viola caipira, flauta baixo, berimbau, tambores, etc) combinados a sintetizadores e samplers.
Das águas ao fogo
Na verdade, Wahba chegou ao Pantanal em março do ano passado para registrar o ciclo das águas. Mas a pandemia da Covid-19 acabou tomando conta do Brasil e do mundo.
Com isso, ele não pôde se deslocar e foi documentando os focos de fogo que se tornariam os maiores incêndios florestais já ocorridos no bioma.
O explorador tem dito que essa produção começou, portanto, “com vida própria”, de um jeito totalmente independente, sem investidores garantidos, arcando com as viagens do próprio bolso e contando com o apoio voluntário de ONGs e profissionais.
A Documenta Pantanal, por exemplo, análise na mobilização para a vaquinha que juntou as doações de pessoas e empresas para a pós-produção.
Durante essa etapa, fundamental, Wahba e equipe empreenderam uma pesquisa que acumulou os registros de 20 cinegrafistas amadores e profissionais, entre guias, voluntários, veterinários, brigadistas, pescadores e cineastas independentes.
Na costura de todo esse mosaico de imagens, ajuda veio em socorro, entre elas, a consultoria do produtor francês Emmanuel Priou, que levou o Oscar por “A Marcha dos Pinguins” (2005).
Entrevista
Lawrence Wahba
Confira a seguir trechos da entrevista exclusiva que Lawrence Wahba concedeu ao Correio do Estado, na manhã de ontem, diretamente de Cuiabá (MT). Hoje, Wahba passa por Campo Grande e amanhã estará em Corumbá para uma celebração no Instituto do Homem Pantaneiro.
O diretor – mergulhador, fotógrafo, apresentador – paulista de 52 anos, realizador de produções já vistas em 160 países, afirma que apenas registrar a natureza não basta mais. Agora, sua militância será sempre, também, de ordem prática, em busca da conscientização e do combate à destruição do meio ambiente.
O cineasta fala também da admiração por Jacques Cousteau (1910-1997), Haroldo Palo Jr. (1953-2017) e outros ídolos da aventura fascinante do registro visual das belezas naturais e da luta pela sua preservação.
Reportagem – depois de tantas produções audiovisuais exploratórias, o que mais lhe chamou atenção no processo de “Jaguaretê-Avá”?
Lawrence Wahba – o que mais me chamou a atenção, enquanto projeto audiovisual e experiência de vida, é que normalmente eu planejo meus filmes, pesquiso e aí levanto financiamento.
[Só] Depois começo a filmar. Nesse caso, eu caí dentro de uma história, que saiu do campo do audiovisual e se misturou com a minha história de vida.Porque, além do filme, eu criei um movimento para ajudar o Pantanal que eu tanto amo. Acho que isso foi o que mais chamou a minha atenção. Essa produção audiovisual não é mais uma produção audiovisual, vai além. É um projeto de vida, de impactar positivamente a natureza além das telas, mas também com ações práticas.
Tem medo ou alguma experiência de alto risco durante como filmagens?
Tive muito medo, sim, claro. Eu entrei dentro de quatro incêndios. Combati incêndio com os brigadistas especializados, com os bombeiros do Paraná, com o pessoal do Prevfogo.
Filmar bicho, nadar com tubarão, estar cara a cara com a onça, caminhar com elefante faz parte da minha vida.
O fogo é uma força da natureza que não faz parte da minha vida. Então, eu tive muito medo. Fui parar no Samu com intoxicação por gás carbônico, tivo que ser atendido por baixa oxigenação, vi fogo, fui cercado pelo fogo.
O que falta para que a conscientização das pessoas sobre biomas como o Pantanal se torne algo mais natural?
Falta o brasileiro conhecer o Brasil. O brasileiro dos centros urbanos muitas vezes é mais familiarizado com leão, zebra, girafa, hipopótamo, que só existem na África, do que com tamanduá, ema, capivara, onça, que existem no Brasil.
O brasileiro precisa conhecer o Brasil. A Educação Ambiental tem que entrar no currículo escolar. É um processo muito longo de conscientização e educação para que o brasileiro não se veja à parte, separado da natureza, e passe a se ver parte da natureza.
Exploradores como o francês Jacques Cousteau fez a cabeça de muita gente no passado, assim como o seu trabalho é largamente admirado pelas gerações seguintes. Quais as suas referências nesse segmento?
Jacques Cousteau foi uma influência para todas as gerações. Quando era criança, eu sabia uma escalação da equipe de mergulhadores de Cousteau.
Eu lembro [alguns] até hoje, como os irmãos Delamotte, Albert Falco (1927-2012), que era o capitão do Calypso, Frédéric Dumas (1913-1991), que era um dos mergulhadores. Enfim, o Cousteau foi uma grande referência.
Quais os próximos projetos em curso?
Já começou a nascer aqui no Pantanal mais um. Ainda não posso revelar qual é o projeto específico.
Em linhas gerais, o que quero fazer a partir de agora é sempre continuar com projetos que vão além das telas. Estar nas telas no mundo audiovisual e no mundo virtual é importante para trazer educação ambiental.
Mas só isso não me satisfaz mais em termos de carreira. Meu objetivo é deixar uma pegada, um impacto positivo, como a criação dessas duas brigadas no Pantanal, que a gente precisa para montar.
A ideia é que os projetos sejam cada vez mais engajantes e materializadores, que eles saiam das telas e realmente ajam na conservação da natureza.
Fonte:CE